quarta-feira, 23 de novembro de 2016

A PEDRA QUE ATINGIU MEU TELHADO DE VIDRO

A PEDRA QUE ATINGIU MEU TELHADO DE VIDRO

Manhã de sábado e um plantão tranqüilo. Discutíamos os casos das crianças  internadas no CTI como sempre fazemos  nesse período do dia. Nessa manhã, pode-se dizer que a discussão seguia animada, até alegre. A estabilidade dos nossos pacientezinhos permitia que estivéssemos assentados à bancada, anotando, sugerindo, divagando. O colega que havia largado o plantão nos avisara que chegaria uma criança do interior para ser internada. Antes que concluíssemos a passagem dos casos, chega a criança que esperávamos. Mas ao contrário do esperado, não vem transportada em uma maca ou incubadora. Chega ao CTI nos braços de uma mulher. Mulher negra, de aparência simples. Os cabelos ressequidos cuidadosamente presos em um rabo de cavalo. Vestia uma jaqueta já surrada, e trazia o bebê aconchegado ao colo. Ao lado, outra mulher de aparência não menos simples, mas usando um jaleco igualmente surrado por cima da roupa, segurava um frasco de soro. Olhei para os três e deduzi:

-É a criança da cidade tal?

- Sim. – Reponderam as duas mulheres quase ao mesmo tempo.

Logo elaborei uma segunda dedução, mas fiz isso antes que a prudência tivesse tempo de me aconselhar. Atirei a pedra para cima:

- Veio sem médico?

Mesmo antes de ouvir a resposta escutei o som do vidro se estilhaçando:

- Não! Eu sou a médica! E ela é a enfermeira.

Respondeu, com um sotaque castelhano, a mulher que trazia em seus braços a criança. Respondeu com firmeza, me olhando nos olhos, mas sem raiva. Respondeu com a serenidade de quem tem o coração leve e a consciência tranqüila.

O mal estar que me invadiu a alma fez violento contraste com a tranqüilidade de segundos antes. Não tive espírito para me redimir do mal feito. Apenas respondi com um “OK” seco e indiquei o leito para o qual a criança deveria ser encaminhada.

Senti na boca um gosto amargo. Era o gosto do preconceito que emergira do meu coração.  A questão não era absolutamente a cor da pele. Fosse uma negra com os cabelos cacheados, óculos Ray-Ban, maquiada, com jaleco branquinho e em cima do salto, eu não teria dúvidas tratar-se da médica. Mas aquela mulher tão simples, de aparência e vestimentas! Aquela mulher cuja singeleza de sentimentos atentava contra todos os protocolos e carregava aquele que era seu paciente em seus próprios braços!

Passei o restante da manhã tentando justificar intimamente minha atitude. Afinal, é muito comum que os pacientes do interior sejam indevidamente transportados sem médico. E qual médico brasileiro, independente de gênero ou raça, transportaria seu doente dessa forma tão próxima? Mas quanto mais justificativas eu buscava mais estilhaços de vidro me caíam à cabeça.

Preconceito é isso. É não enxergar além da forma. É pré-conceber julgamentos desprovidos de bases sólidas. Ele fica lá, sendo discretamente cultivado dentro das nossas histórias, se expandindo lentamente em torno dos nossos conceitos, até que em uma bela manhã ensolarada ele dá o ar da graça.


A colega, provavelmente formada em Cuba, nos entregou seu pequeno paciente, que havia sido muito bem assistido do ponto de vista médico e humano. A precariedade das condições de trabalho não agastou a médica cubana, nem a impediu de fazer seu trabalho da melhor forma. Após deixar o pequeno sob nossos cuidados, se despediu amistosamente, agradeceu e partiu com um esboço de sorriso nos lábios, evidenciando a satisfação de quem cumpriu bem seu dever. E nós ficamos, amargando nosso preconceito.

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